Descobri, recentemente, que uma das grandes prerrogativas históricas do torcedor foi revogada ao longo dos anos. Minha ausência dos estádios fez com que me descuidasse; agora, já vi o fato consumado. Simplesmente perdemos o direito de reclamar. E os que reclamam são denominados "corneteiros".
Sim, exatamente: o jogador faz uma tremenda merda, daí faz outra, outra e mais outra. Ao longo do jogo, sei lá, são inúmeras e, quando não resistimos e gritamos algo como "perna de pau" ou qualquer coisa nem tão ofensiva, pronto!, estamos enquadrados!... A partir desse momento a PATRULHA ANTI-CORNETEIRA repreende a atitude.
Afinal, a função da torcida é "apoiar".
Entenderam? Assim como aquele pessoal do Boca Juniors, que canta durante todo o jogo, temos que apoiar, apoiar e apoiar nosso time. Mas tem um detalhe: o time deles SEMPRE GANHA. Quando não é o título nacional é Libertadores, e assim por diante. Algum troféu eles sempre levantam. A tropa anti-corneta surgiu em meio a teses elaboradas com base nessas torcidas.
No caso dos times brasileiros, porém, o "apoio" acaba servindo para aplaudir derrotas atrás de derrotas. Chega a ser vexatório, como naquele caso da turma do ríntias que fez até camiseta dizendo que nunca abandonaria o time. Os torcedores do atlético de MG, pelo menos, foi mais honesta e abandonou o time quando foi rebaixado - mas voltou a ser "a massa" quando ele conquistou posições na segundona, até tudo se transformar em uma grande corrente, numa mistura de fanatismo com falsidade oportunista - enfim, o espírito brasileiro.
E falo aqui com muita isenção, pois meu time tem relativa competência no que diz respeito ao ato de levantar troféus, canecos e afins.
Quanto à corneta, do mais rudimentar curso de pedagogia à mais sofisticada técnica de docência, temos que é importantíssimo haver crítica, análise, estudo dos equívocos etc. Os gênios das torcidas, porém, pensam de forma diversa - afinal, como bem sabemos, os últimos vencedores do Nobel saíram quase todos das arquibancadas.
Desta feita, é simplesmente PROIBIDO falar mal de um jogador. Vaiar, então..., sai morte! O time joga bem? Aplauso! Joga mais ou menos? Aplauso! Joga mal? Aplauso! (???) Sim! Aplauso! Eles se esquecem de um fato simplório: aquele sujeito correndo no gramado é um brasileiro e, mimado pelos aplausos, jamais vai deixar de jogar mal. Simplesmente se acomodará e, no máximo (exagerando aqui no otimismo), alcançará o grau da mediocridade.
Tudo porque é "feio ser corneteiro", tudo porque "não devemos falar mal do nosso time". É uma lógica tão ridícula, mas tão ridícula, que chega a ser absurdo usar a palavra "lógica" para tratar disso. Pois não há lógica alguma.
Por óbvio, sou contra essa patifaria de invadir centro de treinamento e ameaçar de morte os jogadores. Esse é um extremo que não faz o menor sentido, não tem cabimento e - não duvidem - provavelmente só acontece porque a tal da "corneta" é repreendida por essa nova onda.
Sabem aquele torcedor da antiga, com o radinho de pilha, que xingava o time quando jogava mal, mas aplaudia e gritava quando jogava bem? Pois é, ele tinha toda razão. Deveríamos aprender com esse cara, esse sujeito aí, essa figura mítica e ao mesmo tempo extremamente real. Mas que hoje talvez não exista.
Ele era, sim, um corneteiro. Mas era, antes e acima disso, um torcedor. Amava seu time, mas sabia a hora certa de xingar quem precisava ser xingado, para - também na hora certa - gritar o sofrido campeonato.
Aquele velhinho com o rádio na orelha entendia de futebol mais do que todas as torcidas organizadas juntas, mais do que todas essas bancadas televisivas que pretendem alterar os resultados das partidas usando retórica e videotape. Ele usava a voz, os gestos e não se desgrudava do radinho.
Nunca deixou de xingar seu time, mas sobretudo nunca deixou de aplaudi-lo e até mesmo chorar por ele. Porque todas essas manifestações fazem parte de um mesmo processo complexo que compreende o ato de "torcer". Suprimir uma delas é pura besteira - e dá margem àquelas monstruosidades as invasões de centros de treinamento.
O velhinho do rádio jamais faria isso. Porque ele xinga e grita em campo. Ele chora e comemora em campo. Aprendi com ele, faço como ele. Quem veta os corneteiros não entende de futebol, não conhece a história do futebol e fala de futebol sem saber do que diz. E merece cornetada; nossa e do velhinho.
Um comentário:
hummm..... acho que já li esse texto em algum lugar! hehe... beijoca.
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